"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
sábado, setembro 03, 2005
Sem título, Angelo Milani
Capineiro
Os velhos passam o tempo na frente de suas casas com portas e janelas que dão para a rua. Não há nada para se fazer e os dias são longos e parados. Pontualmente às sete horas da noite entra a voz do Brasil. O sono chega e o silêncio reina absoluto na praça defronte a igreja de São Sebastião. Sem flores nem perfumes a cidade morre perdida no sonho de cada morador.
Sente saudades da mãe, não muita do pai. Acha que não vale a pena chorar e assim como veio irá partir. Tem certas coisas que são difíceis de segurar. As paredes estão caindo e olha só: a porta está aberta. Mas certamente, depois de tanto tempo assim, esqueceram de trancar. E por não se lembrar de afagos ou outras alegrias, se quiser, pode agora entrar, beber, berrar e brigar. A casa está vazia e não há ninguém para acolher nem para dizer adeus.
Os olhos se tocaram ásperos naquele final de tarde modorrento, sem vírgulas ou ponto final. Ele não procurava nada. Ela apenas sonhava. Rapidamente desenharam ávidos traçados entre expressões de química e sorrisos mal disfarçados. Parados, pareciam flutuar. Ela fingia que não via e ele fingia conhecê-la de algum lugar. Aparentemente ínfimo a distância que os separavam. Bastaria apenas um dedo para virar pelo avesso a terra que teimava em girar ao contrário. Ela, rompendo a timidez, ofereceu-lhe um beijo e depois outro e outro depois de outro, e ele, estático, como uma fria folha de revista, recebia a dádiva em perpetuo silêncio.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - amores # 1)
Hoje quem paga a conta sou eu. Há noites em que é preciso arrombar a porta, tomar à frente, deitar à mão. Despedaçar a cabeça na calada madrugada. É na contracorrente da garganta que a voz verte bruta. Desce mais uma, meu irmão! Ontem o destino dançou num instante na ponta de um facão. Qual silêncio se segura, quando na rua o mundo grita?
Subitamente você desperta. Seu coração está acelerado e suas mãos molhadas. Atônito, corre para recuperar o tempo perdido. Ao sair de casa você se esquece de trancar a porta e o seu carro não pega porque a bateria arreou. Você decide ir de ônibus, porém a espera transforma-se numa lenta e eterna agonia. No meio do caminho ele quebra. Com o estomago na boca e a boca com gosto de cerveja, decide ir a pé. Ao chegar no escritório, cansado, suado e descabelado, você nota que seus colegas lhe olham com estranheza, abismados com a sua presença naquele local. Você pensa que é porque está atrasado. Quando chega em seu canto,o mesmo canto, aquele mesmo canto onde você, hora após hora, planejou a aposentadoria, as viagens, os filhos que teria com a mulher que nunca teve, naquele mesmo canto que supostamente sempre imaginou ser o seu canto, ao invés de encontrar tudo em seu devido lugar, depara-se com um estranho. Ele, perplexo, olha para você e hipocritamente lhe diz: Bom dia.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - urbanidades # 3)
Às vezes pensa em ir embora, outra sente saudades da mulher e acha que vai morrer sem nunca ter visto o mar. Ou que já está um bagaço e não vale mais a pena. Sabe apenas o que vê pela tevê e nem liga se a terra onde mora é do governo. Diz que um dia a mata vai desaparecer e deseja ser enterrado na cidade onde nasceu. Mas acha que fica muito longe e na hora ninguém vai se lembrar.
Volto a sonhar. Já não é mais Natal e o Ano-Novo está pra lá de velho. Estou em Janeiro e minha casa é apenas uma pálida lembrança diante das plantações de dendê. Junto ao sol que me desperta, ainda sonolento e entorpecido de ar, silêncio e cheiro de canela, espanta-me estar vivo. Acho que somente depois do meio-dia terei coragem para abrir os olhos e voltar a encarar meu próprio tempo.
Acordou de madrugada. Sua mulher e seu filho dormem. Não quis ligar a televisão, tampouco o rádio. A casa está silenciosa. Não há nada para ser feito. Tudo está em ordem. Apenas perdeu o sono. Não sabe o motivo, nem deseja sabê-lo. Talvez assim seja melhor. É bom começar um novo século. A casa paga. O carro na garagem. A geladeira cheia. Nenhuma novidade, nenhum sobressalto. Mas, está tudo bem. Todos estão com saúde. É isso que importa nessa vida. Saber que todos estão bem.
Estou sem tempo, atrasado, ocupado, meio consumido, pensando se conseguirei chegar antes que o guarda resolva travar a porta. Corro assombrado, cortado em pedaços, esbaforido, feito uma tela expressionista, escorrendo os pés pelos vãos da cidade. É verdade, não estou brincando. Preciso dar conta do recado, suar a camisa, torcer o rabo do gato pra gerir meu ganha-pão. Meu chefe não compreenderia se eu retornasse para o escritório sem as autenticações. Ele vive roendo as unhas, procurando um nó cego, uma besta qualquer pra descontar suas mazelas. Veja, estou com as mãos atadas, sem nenhuma chance de parar, atolado até o pescoço de trabalho. Lutando para manter a cabeça no lugar. É, estou voando, torcendo, rezando pragência estar aberta e não ser barrado na porta. Até a noite, sou como um balão vermelho: hora após hora, caindo. Sem tempo, sempre atrasado, ocupado, ocupadíssimo.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - urbanidades #2)
A minha cidade, aquela mesma cidade tão apinhada de gente, outrora industrial, assombrosamente cinza até os ossos, mergulhava em si mesma como um saco velho de cobre. Cadê idéia, cadê dia, cadê a vida que jazia aqui como sobre a mesa de um bar? Onde estão os empregados, as moças e os velhos camaradas? Será que sonhei eu sozinho - como um relógio atrasado - o eterno domingo, o doce tédio das horas?
(do livro "Perambulando pelo caos" - série -urbanidade # 1)