"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
Corro, atravesso a cidade. Preciso ser ligeiro. Sinto o fogo queimando a pele, vejo a cena antes da hora. Antecipo os acontecimentos. Talvez esta seja minha última oportunidade. Vou sem pedir licença, vou levando a derradeira notícia. Não posso chegar atrasado. É como um formigamento nas mãos, uma coceira entre os dedos dos pés. São fragmentos, imagens desconexas. Perco o sono, ando pela sala. Faço anotações. A vizinhança estranha. À boca miúda, dizem que sou louco. Dou com os ombros, viro as costas. Faço de conta, finjo que não ouço. Zé povinho, gente supersticiosa. Pensam que tenho parte com o demo. Acreditam apenas no que vêem. Desconhecem as sutilezas do espaço. Consulto as estrelas, leio nas entrelinhas. Estou sempre conectado, destrinchando as mensagens. Junto partes, ligo os fios da meada. Permaneço em transe. A informação vem de longe, vem rastejando pelos ares. Ultrapassa fronteiras, invade barracos. Ricocheteia nas paredes, atravessa os telhados. Nesse momento, não tem santo que clareie. Deixo me levar. Aprumo as orelhas, procuro decifrar. É um prédio em chamas? Ou uma ponte que desabou? Latrocínio? Ou Suicídio? Onde? Falando assim, ninguém acredita. O quê? Eu tenho um dom. Vejo coisas. Brincadeira, conta outra. Sozinho, saio de casa. Sozinho, corro pelas ruas. E, por incrível que pareça, mesmo prevendo tudo, não consigo dar conta do recado. Sempre chego atrasado.
(ilustração - sem título, autor desconhecido)
Toda manhã após despedir-se da moça com brinco de pérola, corre em direção à estação de trem. Toma seu lugar na fila, confere o dinheiro da passagem. Diz bom dia para o bilheteiro, escorrega para o centro da plataforma. Encontra velhos conhecidos. À sua esquerda, próximo ao pilar de concreto, em pé, lendo uma revista, o senhor de terno e gravata; à sua direita, sentada, a senhora de cabelos ainda molhados. Do outro lado da plataforma, solitários - são os únicos em sentido contrário -, a mulher e a criança com síndrome de Down. O trem chega. As portas se abrem. Empurra. É empurrado. As portas se fecham. Pressiona. É pressionado. O trem parte. Ganha velocidade. Sacoleja pra cá, sacoleja pra lá. Agora é apenas uma questão de minutos até a próxima estação. Tempo suficiente para sentir e distinguir os mais diversos cheiros.
(ilustração - Walking on a Thin Line, Katie (the cat)
Começaram trocando insultos e palavrões. Depois, partiram para a agressão física. Brigavam por qualquer coisa. Às vezes, um simples espirro já era o suficiente para desencadear uma batalha. Com o tempo, foram se sofisticando. Armaram-se. Arregimentaram gente. Hoje, quando alguém morre, cantam, dançam e prometem vingança. É tudo olho por olho, dente por dente. De resto, é um lugar tranqüilo. Se o senhor tiver um salvo – contudo pode até sair pra passear com seu cachorro.
(ilustração Somnambules et cyniques extra-muros - Karol Baron)