"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
Muralha da China - AmmerPassagem SubterrâneaNoite após noite, sem dar trégua ao tempo, escavam a terra com as próprias mãos. Sempre atentos, escolhem pontos estratégicos ao longo da grande muralha. Durante o dia, perambulam pelo caos dos bairros, afogando os desejos num delírio de sonhos impossíveis. Ao cair da tarde, dirigem-se em bandos para fora dos limites da cidade. Amoitados dentro da mata, esperam ansiosos pela escuridão. São pessoas oriundas de lugares muito distantes, gente de olhos multifacetados, quase degredados. Incapazes de voar, saltar alturas vertiginosas ou tornarem-se invisíveis, cravam com unhas e dentes o próprio destino.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - urbanidades # 29)
Reacción - Max CeballosA velocidade do silêncioVou deixar você na curva do rio, disse o pai, mas, por favor, custe o que custar, não saia de lá. E assim, durante horas, após ser deixado na curva do rio, o menino esperou. Um vento forte inquietava as copas das árvores, agitando o submundo da sua imaginação: em cada farfalhar um vulto, a presença onipresente do desconhecido. Coisas inanimadas, escondidas, conduziam-no para lugares estranhos, solitários. Para espantar o medo, começou a cantar Pai volta, volta pai. Porém, por mais que fingisse, saltava pela garganta, aos trancos, a presença daqueles que não estavam ali. Corria o rio, corriam os pensamentos. Pensou na irmã, onde andaria maninha? e pensando na mãe, tão longe, tão distante, sorriu-lhe o coração que, ao poucos, lentamente, foi se acalmando, se apaziguando, serenando, como as nuvens, após uma tempestade.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - infâncias # 14)
Mea culpa - José ForsPróteses
Um súbito mal se abateu sobre os habitantes da pequena cidade de X. Gente criativa, alegre e farrista, levavam a vida na flauta, dançando conforme a música, sem maiores preocupações ou angústias. Grandes artistas da improvisação, ninguém acreditou quando, certa manhã, após uma estrondosa chuva de sapos, cobras e lagartos, viram-se incapazes de praticar suas gambiarras. Na falta de um culpado concreto, atribuíram tal fatalidade a ausência, ou excesso, de fé. Ora, somente a ira divina para explicar um acontecimento tão sem pé nem cabeça. Impossibilitados de colocar em prática seus conhecimentos adquiridos ao longo dos anos, entregaram-se ao sabor dos ventos, esperando sentados, inertes e parados, o bonde passar, o céu cair, o mundo girar e a vaca voar. Se não morressem antes, assim pensavam os mais velhos, mas também os mais jovens, alguém, com toda certeza, entraria na cidade cavalgando um imponente cavalo branco lhes prometendo outras terras onde pudessem desenvolver suas antigas habilidades. Afora isso, ainda pensavam no corpo que goza e sente dor, na morte que não escolhe idades.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - interioridades # 19)