"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
Sem título, autor desconhecidoHabitatO que está acontecendo? Esfregou os olhos com as mãos. Decerto, é um sonho e logo alguém virá para despertá-lo. Aquele barulho incessante de vozes e pés se arrastando o deixa preocupado, afinal, ninguém está nervoso; a passos milimétricos vão serenamente, como se impelidos por uma força oculta, ou uma miragem, ou sabe-se lá que desejo. Ele nunca estivera em situação parecida nem quando a mãe o arrancava da cama para juntar-se à procissão, nem quando se perdeu pela primeira vez no centro da cidade em plena hora do rush. O simples fato de pensar que está metido no meio já é suficiente para lhe embrulhar o estômago. O pior de tudo são os obstáculos; oh, sim, são tantos que é impossível desviar-se de todos. Ouve gritos e gemidos. Seria alguém importante? Um médico, talvez um advogado? Como se fosse possível parar e pedir desculpas. Ora, se não ia para a direita, se não ia para a esquerda, se para trás era impensável, então, estaria fadado a caminhar eternamente? Como viver sem água, sem comida? Que sufoco! Que calor! Cadê sol? Cadê dia? Cadê noite? Céu sem estrelas, nunca viu; tampouco, céu sem lua. E, essas mãos bobas? Oh, se pelo menos tivesse uma faca. Sente dor. É a cabeça. São os pés. Mas também é o peito. Mal consegue respirar. Decididamente daqui a pouco vai começar a morder. Fingir paciência, boa educação? Vai, sim, é lutar por cada centímetro de espaço. Que seja os outros, não ele. Se pensar o contrário, adeus. Não senhor, tal é o emaranhado que o único jeito é continuar; porque se permanece imóvel, imaginando se é um sonho ou não, acaba sendo derrubado, atropelado e esmagado.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - interioridades - # 24)
Sem título, autor desconhecidoCarimbaMinha única obrigação era distraí-lo. Fizesse sol, fizesse chuva. Geralmente, pedia-me para cantar, tocar violão, dar alguns passos de capoeira. Para um imigrante recém-chegado, nada mal. Mas ele gostava mesmo era de ouvir histórias. Algumas eu inventava, outras caçava na memória. Coisas do outro mundo. Muito sol, praias paradisíacas, coqueiros a perder de vista. Certa noite, após ter esgotado todo meu repertório tropical, mandou-me buscar uma mulata. Alemão do caralho! Que é isso? Tá curtindo com a minha cara? O homem ficou doido. Bufou, gritou, berrou. Ameaçou denunciar-me. Bati o pé Nicht! Ofereceu-me dinheiro extra. Aí, cai matando. Rebolar praquele maluco? Sem chance. Sonho tem limite.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - amores # 22)