"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
Direito de Gozo
Se não pagar e ninguém se apresentar como fiador, que o devedor seja levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso máximo de 15 libras. (Lei das XII Tábuas – Tábua Terceira – Item Sexto -450 A.C)
Posso provar por A + B que sou incompetente. Não preciso descer ao fundo do poço para constatar meu próprio fracasso. A incapacidade para as coisas práticas da vida está ai, jogada em cima da mesa. Espalhada pelas inúmeras agências de cobrança, devidamente gravada nos bancos de dados, constantemente acessada na hora em que me atrevo desejar. Sim, sou o único responsável pela minha miséria. Sonhei alto demais, quis comer do bom e do melhor, entreter-me com belas imagens. Senhor Gerente, concedei um último pedido para esse pobre devedor: quando meter os juros, por favor, seja gentil.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - urbanidades # 9)
Sem Excessão
Ana era uma criatura muito, muito pequena. Manca da perna esquerda, cega do olho direito, exibia-se na praça central, defronte a matriz de Nossa Senhora da Boa Oportunidade. Admirada por crianças e senhoras de meia-idade, ganhava a vida recitando versos ao mesmo tempo em que requebrava os quadris. No intervalo das apresentações, gostava de tomar tiquira, ruminar indecências e cuspir na direção contrária ao vento. Sabia de cor e salteado desde menina que a vida, sobretudo para criaturas reduzidíssimas, não admite vacilo. Por isso, quando lhe propuseram traficar água da boa, livre de impurezas, não teve dúvidas: aceitou sem pestanejar. Ana era uma criatura diminuta, mas não era burra.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - infâncias # 3)
Auto-RetratoTudo isso é muito estranho. Primeiro eles tiraram meu sangue, depois colheram amostras da minha pele, da minha saliva, do meu suor. Explicaram que era procedimento padrão, coisa rotineira, nada para me preocupar. Durante muito tempo permaneci calado, ouvindo seus discursos, suas teorias e acreditando que um dia estaria curado. Só raras vezes ousei levantar a voz, protestar ou duvidar de seus procedimentos. O que importava era minha felicidade, meu bem-estar. Agora, e tudo isso é muito estranho, reclamam que a experiência não deu certo. Deram para gritar, berrar e, já faz alguns dias, cortaram minha ração. Querem que eu vire um trapo e morra de fome? Até um animal de circo recebe tratamento melhor. Acho que mereço um pouquinho de consideração e respeito. Não creio, como eles querem me fazer acreditar, que é assim mesmo que caminha a humanidade.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - interioridades # 7)