"Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida" - Walter Benjamin
Alimenta os teus sonhos alados - João ViegasMicrodianoO sol ainda não nasceu. A cabeça, entretanto, continua no lugar. Sim, porque as pernas já se foram. Devem estar por ai, jogadas em algum canto. Afinal, quem precisa de mãos? Não, os ouvidos também desapareceram. Acho que foram levados juntamente com os olhos. A memória falha nessas horas. Mas a boca já se acostumou com a falta de língua. Sim, foi a primeira coisa que arrancaram; logo ela, pobre coitada, que nem aprendeu a cantar. Estava cagando, quase soluçando quando colocaram meus dentes em um saquinho plástico. Genitália, meu Deus, pra quê? Quem precisa de um pau numa situação, digamos, tão inconveniente? Não, nada de braços. Onde já se viu uma pele irradiar beleza em meio ao sofrimento alheio? Aí eles resolveram terminar o serviço. Lixaram, cutucaram e arranharam. E, de tanto lixar, arranhar e cutucar acabaram esquecendo de cortar o nariz. Sim, eu ainda tenho um nariz. Nem grande, nem pequeno, mas na medida exata para continuar respirando.
(do livro Perambulando pelo caos" - série - urbanidades # 6)
Ghost - Holly EyeApósEm casa, depois de guardar os últimos dentes, ocorreu-lhe que esquecera de alguma coisa. Aos 70 anos de idade, não admitia o esquecimento. Sem pressa abriu o freezer e contou olhos, lábios, testículos e narizes. Vasculhou nos armários, mas as unhas estavam lá; juntamente com alguns restos de dedos. Olhou num gesto nervoso para as mãos salgadas, esperando serem guardadas; e assim, sem nenhuma vivacidade, sem nenhum espanto, lembrou-se dos corações. Sim, os benditos estavam passados. Para comemorar sua lucidez, abriu uma garrafa de suor.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - interioridades # 5)
Jump to another life - Daniel Camacho
O que é um sóPela manhã, havia sol.
Teríamos podido andar descalços pela praia, ou tomar uma cerveja bem gelada; teríamos podido admirar o céu azul celestial.
O sol é para todos, dizem.
Mas ele deixa as periferias fétidas, as crianças surdas, os nervos à flor da pele e transforma as favelas em lugares inabitáveis.
(conto reverso - “Explicação” de Peter Bichsel)
poetas grafite - Rui Souza
Hélice duplaOlhou para o relógio, pensou que estava atrasado, mas era inverno e os cegos caminhavam devagar. Os velhos pareciam ainda mais velhos e apavorava-lhe a idéia de abatê-los antes do café da manhã. Chovia, fazia frio e seus ossos congelavam. Após dois anos sem faltar ao serviço, além de engordar sonhava com uma promoção. O problema é que ninguém demonstrava mais interesse pela carreira. Depois, o trabalho já não possuía a mesma aura de antigamente. De fato, era extremamente monótono. Seu único consolo é que com o passar do tempo aprendera a dissimular o tédio criando um rigoroso e aleatório critério de seleção. Agüentar, dia após dia as mesmas caras, os mesmos aleijados, os mesmos mancos, os mesmos retardados, exigia muita imaginação.
(do livro "Perambulando pelo caos" - série - urbanidades # 5)